Leucemia pode ser sinônimo de esperança
no Brasil
Era um prato cheio de
morangos, cobertos por uma espessa camada de leite condensado e chocolate
granulado. Andréia Soares Gonçalves da Silva, de 35 anos, faz cara de quem
reprova o cardápio ao mencionar a comida preferida de filha Natalia, quando
ainda era permitida comer alimentos crus. “Ela era estilo patricinha, tinha uma
cozinha de brinquedo. Era foganzinho,
pratinho, colherinha, quando o médico permitia visita ela chamava as amigas e
fazia aquela comida.”, conta Andréia.
Mas não era sempre que
Natalia poderia ter regalias como criança. Aos três anos de idade, o
diagnóstico do médico constatou que ela possuía leucemia. Desde então, Natalia
era mais uma pessoa no Brasil que precisava de transplante e teria uma chance
entre 100 mil.
A luta da mãe começou primeiro
entre a família. Segunda a mãe, a doença
quase que repentina mobilizou todos. “Era, avô, avó, tio, tia, todos queriam
ser o doador de Natalia.”, relembra Andréia. Quem chegou mais perto foi ela,
que pode doar suas células brancas.
De acordo com Aline Andressa,
enfermeira responsável pelas coletas de sangue para doação de medula óssea, no Hemepar
de União da Vitória, as plaquetas, chamadas de células brancas, existentes no
sangue, são as responsáveis pelo sistema imunológico do organismo. “Sistema que
faz o combate de doenças”, explica a enfermeira. Natalia frequentemente precisava da doação
das células e por ter o organismo vulnerável a doenças na maior parte do tempo
era proibida de tudo que pudesse lhe transmitir vírus ou bactérias.
Quando chegou na época de ir
para a escola, a menina era alfabetizada no hospital. Ao ter folga do
tratamento quimioterápico e radioterápico, no Hospital Pequeno Príncipe, na
capital do Paraná, Curtiba, a diversão era ir para ao shooping. “Ela tinha uma bolsa rosa de cachorrinho que
ganhou de presente, íamos igual duas madames. Íamos mais para olhar mesmo.”,
diz Andréia. No entanto, durante o passeio, a criança dificilmente tinha
permissão de comer algo que não fosse preparado pela mãe. Segundo Andréia, por
recomendação dos médicos a comida deveria ser higienicamente preparada, com talheres
e pratos sempre esterilizados. “Comida crua, só quando ela estava mais
fortinha”, diz Andréia. O medo que a criança contraísse a doença era constante.
Até perder um dente era
sinal de problema. Quando Natalia perdeu o primeiro dente, a situação que
parecia normal gerou preocupação.”Ela começou a sangrar. Encharcou duas toalhas
de banho. Tive que levar ela para o hospital urgente”, afirma Andréia.
Apesar das limitações que a
Natalia levará, segundo Andréia a menina encarava as dificuldades com
normalidade. “Até quando o cabelo caiu foi normal. Ela via muitas crianças
iguais a ela. Carequinhas. Então levava numa boa”, lembra Andréia.
A
esperança mora longe
Foi em 2002 que as viagens
começaram. Como moradora do município de União da Vitória, depois que soube do
diagnóstico da filha, Andréia foi encaminhada para o Hospital Pequeno Príncipe.
No Município, faltam Unidades de Saúde e Hospitais que ofereçam o tratamento, mas
proporciona transporte gratuito para os pacientes de Leucemia que necessitam ir
para a capital.
Andréia e Natalia não foram
as únicas que precisaram do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Ângela Mara
Fontes, responsável pelo setor de transporte da Secretaria de Saúde do
município, atualmente cerca de 800 pacientes de câncer utilizam o transporte
por mês, sendo que 36 adultos e quatro crianças tem leucemia. “O tratamento é todo feito pelo SUS, o
transporte, a alimentação e a hospedagem”, esclarece Ângela. A requisição de
passagem é feita todo mês.
São três meios de
transporte: carro, micro ônibus e ônibus. Segundo Ângela, a distribuição das
vagas é feita de acordo com o estado de saúde do paciente. Moradores com leucemia costumam ir em carros
separados para não correrem o risco de adquirir doenças infecto contagiosas. Pessoas
com idade menor que 18 anos e maior que 60 anos é obrigatório levar um acompanhante.
Alguns pacientes decidem
morar na capital, como foi o caso de Andréia. Depois de realizar várias
viagens, com o transporte do SUS, ou com a ajuda do pai que dirigia o carro até
Curitiba, a decisão foi por morar na cidade. Morando com a filha, Andréia
dividirá as experiências de ter uma filha com câncer em casa com outras mães.
No hospital, enquanto as crianças coloriam e brincavam em mesinhas separadas,
na sala de espera para a consulta, a conversa entre as mães era sempre a mesma:
como cozinhar um prato diferente, fazer uma atividade fora do hospital,
proporcionar aos filhos uma vida mais
agradável. Foi dessas conversas que Andréia e mais um grupo de mães resolveram
ter outro filho que pudesse ser doador compatível.
Da desilusão nasce uma esperança de vida
Em 2004 nasce o Pedro, segundo
filho de Andréia. Apesar das possibilidades do menino ser doador compatível a
irmã serem de 25%, a tentativa não deu certo. Para a mãe restava a única esperança,
encontrar um doador fora da família. Não mediu esforços, a única opção era se
dedicar no projeto de doação de medula óssea, que mobilizou vários voluntários
em 2002.
O objetivo era conquistar o
maior número possível de habitantes, entre 18 e 55 anos, com boas condições de
saúde, e que se disponibilizassem a ir ao Banco de Sangue e retirar 10 ml de
sangue.
Mesmo sendo possível só
recolher 50 mostras de sangue mensais, no Hemepar, o trabalho não poderia ter
fim. “A vila de espera mata. Mata de depressão”, declara Andréia. Das cinqüenta
mostras de sangue são feitos cadastros e incluídos no Registro Nacional de
Doadores de Medula Óssea (Redome).
Atualmente, segundo dados do
Instituto Nacional de Cancêr (Inca), há 1,6 milhão de doadores inscritos. O
Brasil tem o terceiro maior banco de dados do gênero no mundo, ficando atrás
dos Estados Unidos com cinco milhões de doadores e da Alemanha com três
milhões.
O material genético dos
cadastrados é comparado aos do Registro Nacional de Receptores de Medula Óssea
(Rereme). Quando encontrado material compatível, o cadastrado e o paciente é
encaminhado à novos exames.
No caso de Natalia foram
quatro anos de espera. Em 2006, conseguiu um cordão umbilical de um recém nascido
dos Estados Unidos, recebido de um cadastro como o do Banco de Sangue de Cordão
Umbilical e Placentário (BSCUP), do Inca.
Foram 60 dias de internação,
para a preparação pré-operatória. Cerca de 17 hospitais no país tem suporte
para realizar transplantes como o de Natalia, que foi realizado em Curitiba.
Mas devido ao seu estado de saúde já debilitado, pelo tratamento que realizava há
anos, não resistiu ao transplante. “Natalia não tinha mais leucemia, ela morreu
de insuficiência respiratória”, contesta a mãe.
Após o falecimento da filha,
Andréia deu continuidade ao projeto de doação de medula óssea. Há quatro anos,
ela conta com o apoio das Universidades de União da Vitória para seguir com o
projeto.
Hoje, tem o nome de Doe Medula, com o slogan Um Gesto de Amor Salva Vidas. “Com a
minha filha eu pude entrar na vida do câncer. Então, nós pudemos aprender as
possibilidades que nós, aqui fora, temos de conseguir possibilitar a esses
pacientes um pouquinho mais de vida e de conseguirem o transplante de uma forma
mais rápida.”, esclarece Andréia.
Apesar de ter perdido a
filha de sete anos, ela se sente feliz em ter feito o que foi possível para que
a vida de Natalia e de milhares de pessoas com leucemia, no mundo, tivessem esperança.